No rastro das intervenções e arbitrariedades da era Bolsonaro, eleição reitoral nas estaduais paulistas acende alerta sobre garantias democráticas e defesa da autonomia

Primeira a ser realizada dentro do mandato do atual governo paulista, a eleição para a reitoria da Unesp está marcada em primeiro turno para 1º a 3/10/2024. As seguintes ocorrerão na Unicamp, início de 2025, e na USP, ao final do mesmo ano.

O cenário político paulista recente semeia dúvidas sobre como o resultado da consulta interna nestas três instituições será tratado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).

Os quatro anos de governo Bolsonaro, padrinho político do governador, foram de seguidos cortes de verbas nas universidades e institutos públicos federais. Mas não foi só. Levantamento feito pelo Andes-Sindicato Nacional –  “A invenção da balbúrdia: dossiê sobre as intervenções de Bolsonaro nas Instituições Federais de Ensino Superior” – mostra que, de 2019 a 2022, Jair Bolsonaro interferiu na nomeação de gestores e gestoras de, ao menos, 25 instituições, seja empossando nomes que constavam em segundo ou terceiro lugar na lista tríplice encaminhada pelas universidades ao Ministério da Educação (MEC), seja indicando pessoas que sequer participaram dos processos de escolha junto à comunidade acadêmica. O documento (clique para conferir) expõe detalhes dos enormes prejuízos causados a estas instituições e suas comunidades.

E como vai se comportar o governador Tarcísio em relação às universidades estaduais paulistas? Seguirá o mestre? As possíveis respostas demandam um mergulho um pouco mais fundo no cenário político atual.

Do cercadinho de Brasília ao martelo de Thorcísio

Menos pirotécnico que o ex-presidente da República, que brindava diariamente o país com frases e feitos machistas, misóginos, racistas e preconceitos de todo tipo, enquanto encaminhava as pautas econômicas conservadoras e desastrosas sob a batuta do ministro Paulo Guedes, como a reforma de Previdência em 2019, o governo Tarcísio de Freitas tem buscado evitar grandes polêmicas no campo da ideologia e dos costumes, embora se classifique como “bolsonarista raiz e fiel”.

Para impressionar a base “bolsonarista”, o governador tenta emplacar uma ou outra medida mais chamativa, como a implantação das escolas cívico-militares no estado (medida suspensa por decisão judicial). Já as pautas econômicas e sociais vêm sendo encaminhadas com maior rapidez e consistência:

- as privatizações, iniciadas com a da Sabesp (aprovada na Alesp em dezembro de 2023, e que deve ter linhas do metrô e da CPTM na sequência), também têm na mira a gestão das escolas estaduais, e caminham sem obstáculos; neste sentido, a imagem do governador quase quebrando a mesa da Bolsa de Valores de São Paulo com o martelo durante leilão de privatização de um trecho do Rodoanel, em março de 2023, é simbólica e reveladora.

- o secretário de Educação e empresário Renato Feder, trazido por Tarcísio após sucatear a educação pública no Paraná, já trocou professores pelo ChatGPT na produção de aulas digitais, tentou banir os livros didáticos e trocá-los por slides (medida revertida após péssima repercussão na opinião pública), entre outras iniciativas com vistas à possibilidade de negócios entre o estado e suas empresas.

- a aprovação, no bojo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2025, da possibilidade de corte de 30% dos recursos destinados à Fapesp.

- a asfixia orçamentária e a falta de contratações nos institutos públicos de pesquisa do estado.

- a proposta de emenda constitucional (PEC) 9/2023, enviada pelo governador à Assembleia Legislativa (Alesp), e que prevê a redução dos investimentos em educação dos atuais 30% para 25% das receitas do estado, já foi aprovada nas comissões e aguarda votação em plenário.

- a reforma administrativa, que visa reduzir direitos do funcionalismo público paulista, já iniciada pelo governo estadual.

- o recrudescimento da violência policial, afetando principalmente as periferias do estado, sob o comando do secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite.

Tarcísio, o financiamento e a reforma tributária

Em relação às universidades públicas, alvos preferidos na gestão Bolsonaro, a política do governo Tarcísio também guarda diferenças. Evitando os ataques ideológicos feitos pelo ex-presidente – que repetia diariamente que as universidades públicas são espaço de “balbúrdia”, “paraíso da maconha”... – o atual governador paulista mostra-se mais focado nas questões que são vitais ao presente e ao futuro das estaduais paulistas, como é o caso do financiamento e da autonomia.

Quando enviou sua proposta de LDO 2025 para a Alesp, no início de maio/2024, o governador tentou arrochar os repasses para Unesp, Unicamp e USP, inserindo no mesmo montante de recursos três outras instituições (Famerp, Famema e Univesp). A reação da comunidade interna e externa, inclusive dos reitores, forçou um recuo do governador e o ‘jabuti’ foi retirado.

A ameaça acima, que ainda paira sobre as universidades estaduais, foi um sinal claro das intenções do governo Tarcísio de Freitas em relação a estas instituições. A autonomia universitária, conquistada pelo movimento após uma grande greve em 1988, que trouxe consigo a dotação orçamentária fixa, não agrada os atuais ocupantes do Palácio do Bandeirantes.

Com o advento da reforma tributária, aprovada no Congresso Nacional em dezembro passado (PEC 45/2019), o formato desta dotação (atualmente, 9,57% da quota-parte do Estado na arrecadação do ICMS) terá que mudar. O ICMS será extinto e, em seu lugar, será criado o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Esse novo imposto começará a vigorar progressivamente a partir de 2026, até substituir plenamente o ICMS.

O percentual do ICMS-QPE não consta na Constituição Estadual, mas está previsto no Decreto nº 29.598/1989, que estabeleceu a autonomia das três universidades no início de 1989. Na época, o índice era de 8,4% e foi subindo nos anos seguintes, por conta das mobilizações da comunidade acadêmica, até chegar ao percentual atual de 9,57%, ainda insuficiente dado o crescimento das universidades estaduais desde o início dos anos 2000.

Com o fim do ICMS, é com o governo Tarcísio que deverá ser negociada a definição de um novo parâmetro de financiamento para as universidades estaduais paulistas. Os reitores já foram chamados algumas vezes para reuniões na Casa Civil do governo, ao que tudo indica, na tentativa de impor medidas como a inclusão de outras instituições no orçamento de Unesp, Unicamp e USP, de restringir a autonomia e de rebaixamento dos recursos em meio às mudanças trazidas pela reforma tributária. A comunidade acadêmica deve se preparar para defender a autonomia e o financiamento adequado para as estaduais paulistas.

Tarcísio e as eleições reitorais nas estaduais paulistas

As leis que restringem drasticamente as possibilidades de um processo mais democrático na escolha de dirigentes das universidades públicas no Brasil remontam à ditadura militar, com pequenas alterações introduzidas nos anos 80 e 90.

Os processos internos de consulta à comunidade sobre os candidatos e as candidatas às reitorias são variados, alguns mais abertos, outros bastante restritivos. Todos eles levam à formação de uma lista tríplice – composta com os participantes no processo eleitoral e, se necessário, com outros nomes para “fechar” as três indicações –, que é enviada ao chefe do Executivo, a quem cabe a decisão final. Ou seja, é da “canetada” do presidente da República, caso das federais, e do governador, nas estaduais, que sai a palavra final sobre quem conduzirá a universidade.

No âmbito federal, como vimos no início desta matéria, o governo Bolsonaro protagonizou um expressivo número de intervenções, indicando nomes que sequer constavam nas listas tríplices. Nestas instituições, sucederam-se períodos de crise institucional, incertezas e desmandos, que se fazem sentir até hoje.

Como agirá o governador Tarcísio de Freitas quando receber a lista tríplice da Unesp, com vistas ao mandato de 2025-2029? Respeitará a vontade expressa na consulta à comunidade ou, caso tenha preferência por outros nomes, intervirá na instituição para impô-los?

As eleições na Unesp: O que foi aprovado no Colégio Eleitoral e a liminar da Chapa 3

Composto pelos membros do Conselho Universitário (CO), Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) e Conselho de Administração e Desenvolvimento (CADE), o Colégio Eleitoral responsável por organizar as regras para as eleições reitorais da Unesp reuniu-se pela primeira vez em 24/4/2024, quando foram escolhidos os membros da Comissão Eleitoral Central (CEC).  

Dentre as propostas de mudanças apresentadas e que foram acolhidas pelo Colégio Eleitoral, remetidas às unidades para análise e aprovadas em nova reunião em 27/6, estão:

  • Alteração na fórmula de apuração dos votos: No formato vigente na apuração das eleições passadas, o índice de cada chapa concorrente era definido pelo número de votos que ela obteve, dividido pelo número total de eleitores de cada segmento. Por fim, esse valor era multiplicado pelo peso de cada categoria (0,7 para os votos de docentes, 0,15 para os dos servidores técnico-administrativos e 0,15 para os dos estudantes). O resultado final desta conta era o índice total da chapa. Pela nova formulação, o “número total de eleitores” é substituído pelo “total de eleitores votantes”. Com isso, passam a ter influência no resultado da consulta à comunidade todos os que efetivamente exerceram o seu direito de votar, e não aqueles que se ausentaram da consulta eleitoral e não participaram do processo.
  • A lista tríplice deverá ser encabeçada pela chapa com maior índice de votos, sendo os demais nomes indicados a critério do Colégio Eleitoral, não necessariamente as chapas derrotadas. O objetivo, de acordo com a regulamentação aprovada, é que, “ao final do processo, aqueles que forem referendados pela comunidade sejam os artífices da consolidação da universidade pública, gratuita e de qualidade, com apoio do conjunto de servidores e de estudantes”.

            A Chapa 3 ingressou na justiça contra a decisão do Colégio Eleitoral quanto à constituição da lista tríplice. Em decisão datada de 21/8/2024, o juiz Antonio Augusto Galvão de Franca, do TJ-SP, concedeu liminar suspendendo o formato aprovado e solicitando informações à reitoria da Unesp. Ao contrário do que chegou a ser difundido, segundo a reitoria, a liminar não suspende a consulta.               

A decisão da comunidade unespiana deve ser respeitada!

Independente de qual das três chapas vença as eleições à reitoria da Unesp, é essencial que a vontade soberana da comunidade seja respeitada. É o mínimo que se espera. Qualquer tentativa de golpe sobre a escolha que emergir da consulta terá reação da comunidade, por certo.

A efetivação de um nome que não seja o/a do/a vencedor/a da consulta democrática da comunidade acadêmica pode ser considerada legal. Porém, uma candidatura que, mesmo sob o manto da legalidade da lista tríplice, aceite ser interventora de um governo de coloração fascista, deve ter clareza do significado imoral e indigno deste seu ato. A mesma imoralidade que quase destruiu a Unesp quando o nome do professor William Saad Hossne, vencedor em duas consultas seguidas à comunidade em 1983, foi trocado por um interventor do governo de plantão. Não admitiremos a reedição da truculência e do autoritarismo originários da herança das casernas. Nossa Universidade se fez e se constituiu na luta de resistência contra o arbítrio e a opressão. Não podemos ser menos do que já fomos, e não o seremos!

 

Montagem fotos

Ocupação da reitoria da Unesp, em 1984, pela não indicação do professor Saad, pelo então governador Franco Montoro, ao cargo de reitor. Na época, a reitoria localizava-se na Praça da Sé

 

Paridade, fim da lista tríplice... É preciso avançar!

Muitos dos que ingressaram na Universidade mais recentemente não sabem que o processo de escolha dos dirigentes da Unesp já foi bem diferente do atual. A aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDB (lei nº 9.394/96) em 1996 deu início a uma etapa de restrição à autonomia universitária em todo o país.

Na Unesp, as experiências de escolha para reitor e vice anteriores a 1996 apontavam para a consolidação de uma prática democrática iniciada em 1983. Naquele ano, a comunidade acadêmica – representada pela Adunesp S. Sindical, DCE-Helenira Rezende e Comissão dos Funcionários (o Sintunesp viria a ser criado em 1989) – enfrentou e venceu o conservadorismo e o autoritarismo da legislação e dos dirigentes, conquistando a consulta paritária para a eleição dos postos executivos. Ou seja, a votação de cada segmento passou a “pesar” um terço na composição final dos votos obtidos por cada chapa.

O movimento de democratização da Unesp teve um importante impulso naquele momento. Essa luta propiciou ganhos concretos para a democracia no interior da universidade, não só expressa no Estatuto de 1988, como também em todas as consultas paritárias realizadas pelo Colégio Eleitoral desde então. Embora certos procedimentos de eleição, como é o caso da paridade na consulta, não estivessem previstos estatutariamente, a vontade política da comunidade era respeitada por meio de pactos consensuais nas diversas instâncias de tomada de decisões.

Na Unesp, o advento da nova LDB em 1996 serviu de estímulo aos setores mais conservadores, culminando com a aprovação, pelo Conselho Universitário, de uma reforma no estatuto da Universidade, que pôs fim aos processos democráticos que vinham sendo observados. No entanto, a “exigência” da LDB (de um peso de 70% para a comunidade docente, diferenciando o peso dos segmentos, redundou no famoso 70% / 15% / 15% da Unesp) não citava as consultas eleitorais, restringindo-se à composição dos órgãos colegiados. Porém, os conservadores da Unesp foram além do que pedia a nova lei.

Atualmente, NADA impede que a comunidade unespiana volte a ser consultada de forma paritária, como ocorria antes de 1996. É preciso ter, apenas, vontade política de fazer da universidade pública um espaço de democracia e respeito às pessoas que a constroem. A consulta paritária, inclusive, é utilizada em várias universidades federais, sem que isso represente nenhuma ‘afronta’ ao que rege a LDB.

Outra reivindicação importante é o fim das listas tríplices. É preciso que a decisão da comunidade seja respeitada e que o processo de escolha dos novos dirigentes comece e termine na própria universidade. Neste sentido, tramitam no Congresso Nacional vários projetos que buscam alterar a regra da escolha de dirigentes nas instituições federais de ensino (universidades e institutos federais e CEFETs), entre eles um apresentado pelo deputado Tarcísio Motta (PSOL-RJ) a pedido do Andes-Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior. Em dezembro de 2023, a relatora dos projetos, deputada Ana Pimentel (PT-MG), aprovou um substitutivo agrupando todos eles; embora não contemple todas as demandas por mais democracia no processo eleitoral, o substituto avança no sentido de extinguir a exigência da lista tríplice e encerrar o processo eleitoral na própria instituição. Para tornar-se lei, é preciso que vá à votação em plenário da Câmara Federal, o que não tem data para acontecer. Se aprovado, certamente fortalecerá a possibilidade de mudanças nas legislações estaduais, como é o caso de São Paulo.