Sobre o estupro culposo, ou a celebração dos canalhas

Sobre o estupro culposo, ou a celebração dos canalhas

No julgamento do acusado do estupro da influenciadora digital Mariana Ferrer, o acolhimento do argumento de que, ao réu, não foi possível discernir se a vítima tinha ou não condições objetivas de manifestar a sua vontade, e a desconsideração da manifestação da vítima, que afirma o contrário, estabelece uma lógica procedimental que naturaliza a menção à estapafúrdia figura do “estupro culposo”. Trata-se deuma locução que expressa/representa o paradigma do tratamento desumano e cruel, que majoritariamente é dado às mulheres brasileiras vítimas de estupro – ou de qualquer outro tipo de violência de gênero – pelas instituições que deveriam acolhê-las, protegê-las e promover algo que pudesse ser classificado como justiça.

Salvo melhor juízo, subjaz a essa expressão uma concepção que não pode ser desprezada, uma vez que uma de suas implicações é que todas as formas de violência contra a pessoa humana poderão, daqui para frente, ser caracterizadas como culposas, desde de que não se tenha elementos de prova material direta, cabal e irrefutável de que a ação foi praticada com total e pleno domínio de todas as variáveis do contexto e das circunstâncias em que se deu, de modo que fique absolutamente demonstrado, sem sombra de dúvida, que foi perpetrada com a intenção inquestionável de produzir dano à vítima. A viger esse tipo de procedimento, os feminicidas passarão a reivindicar que seus crimes sejam sempre caracterizados como culposos. Aliás, o discurso recorrente dos assassinos de mulheres é que eles as amavam e não tinham a intenção de matá-las.

 Ainda nessa linha, porque não, também, roubo culposo, corrupção culposa, assédio moral culposo, calúnia e difamação culposas, tortura culposa, genocídio culposo? É a liberação geral para que canalhas de todos os matizes fiquem absolutamente à vontade, sem receio de praticar seus crimes. Se fossem julgados com uma métrica semelhante à que permeou o julgamento do acusado de estuprar Mariana Ferrer, Adolf Eichmann, o Marechal de Campo Id Amin Dada, o Imperador da República Centro-Africana Jean-Bédel Bokassa e o médico Josef Mengele, apenas para ficar em poucos exemplos, muito provavelmente, a eles seria imputado algo culposo, sem a intenção de matar.

Eichmann apenas teria cumprido a sua função burocrática de organizar o transporte de cidadãos, particularmente de judeus, que, eventualmente, foram mortos em seus destinos, mas não foi ele que os submeteu a um tratamento desumano e cruel nos campos de concentração, não foi ele que abriu a torneira que liberou o gás, e também não foi ele que apertou o gatilho que os levou à morte. Portanto, se foi genocídio, foi culposo, sem a intenção de matar.

Id Amin teria como objetivo apenas defender Uganda contra seus inimigos internos, tendo, para isso, cumprido o doloroso dever de matar cerca de 300 mil pessoas, ou seja, há aqui apenas uma situação que, no máximo, poderia ser caracterizada como genocídio culposo.

O imperador da República Centro-Africana queria apenas introduzir novos sabores ao seu churrasco de final de semana, acrescentando carne humana, entre outras coisas que foi obrigado a fazer em prol do seu país, tendo sido, inclusive, acusado de promover o massacre de crianças que se recusaram a usar uniforme escolar com a sua foto. Novamente aqui, adotando a lógica que moldou a forma como ocorreu o andamento do julgamento do acusado pelo estupro de Mariana Ferrer, obviamente não se caracterizaria a intenção de matar ninguém, nem os milhares que morreram em decorrência da ação necessária das forças de segurança para a manutenção da paz social;  também seria o caso de crimes culposos, sem a intenção de matar.

Mengele seria festejado como um visionário da ciência médica, pelo reconhecimento do seu trabalho pioneiro sobre o que hoje sabemos a cerca dos limites da resistência humana. Para construir esse repertório de conhecimento sobre a biologia humana, homens, mulheres e crianças tiveram que experimentar sofrimentos atrozes, e muitos morreram durante as experiências, mas não houve explicitamente a intenção de impor qualquer tipo de dano a eles, muito menos de matá-los; aqui seriam tortura e homicídio culposos, e com louvor!        

Todas as ditaduras sanguinárias na América Latina e no resto do mundo poderiam ter os seus perpetradores, assassinos e torturadores anistiados moralmente de seus crimes sob a justificativa de que os crimes de lesa humanidade por eles cometidos seriam, na pior das hipóteses, culposos, sem a intenção de torturar, nem de matar. É a mesma lógica implicada no andamento e no desfecho do julgamento do acusado pelo estupro de Mariana Ferrer.

Segundo o artigo 18 da Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, um crime caracteriza-se como culposo “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”, e doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”, portanto, a linha de raciocínio que considera que poderia existir algo como “estupro não intencional” sugere a tipificação do que seria um “estupro culposo”, em que pese a admissão da existência de provas da materialidade e autoria. Isto significa, segundo a letra da lei, admitir que seja possível cometer um estupro por imprudência, negligência ou imperícia, sem que o estuprador queira, ou assuma, o risco de estuprar alguém, o que faz com que o sistema judiciário brasileiro torne-se bastante acolhedor para todos os estupradores que já foram julgados e condenados e, também, para os aspirantes que estarão bem mais à vontade para estuprar quem quiserem.

E é exatamente para isso que aponta essa sequência deplorável, vergonhosa e escandalosamente desumana e cruel que foi levada a cabo no julgamento do acusado de estuprar Mariana Ferrer. Portanto, diante desse gravíssimo episódio que, a nosso ver, desfigura qualquer relação entre a mínima noção de justiça e a atuação do judiciário brasileiro, apresentamos o nosso mais veemente protesto e conclamamos todas as pessoas e instituições que têm compromisso com os direitos humanos e com a justiça a se manifestarem pela anulação desse julgamento e pela responsabilização de todos os que conspiraram, de uma forma ou de outra, para enxovalhar a condição feminina e sabotar as garantias mínimas à dignidade humana que os agentes do estado têm a obrigação constitucional de assegurar a todos os brasileiros e brasileiras, inclusive às mulheres vítimas de estupro.

Por fim, nossa solidariedade incondicional a Mariana Ferrer e às mulheres vítimas de todos os tipos de violência, com um convite para assinarmos a petição (em http://chng.it/H6ckYJ47 ) que reivindica seja feita justiça.

Diretoria da Adunesp Central