Artigo - Uma receita simples e outra mais simples ainda

Artigo - Uma receita simples e outra mais simples ainda

Por Angelo Antonio Abrantes (Faculdade de Ciências - Departamento de Psicologia. UNESP campus Bauru) 

Discutir política não deveria ocorrer tendo como referência as pessoas e a personalidade de tal ou qual indivíduo, por mais que eles sejam admiráveis ou asquerosos. Existem sim pessoas odiosas, desprezíveis e outras cativantes e respeitáveis. É importante que nos organizemos em torno daquelas que nos desenvolvam como seres humanos. No trabalho, nos estudos, nos esportes, na família, na política sempre nos encontramos com pessoas que valorizamos positivamente e aquelas que evitamos, visto que são negativas de acordo com os valores que defendemos, acreditamos e pautamos nossa existência.

Essa relação de valorizar e desvalorizar sempre ocorre, mesmo que muitos não tenham tempo de parar para pensar e hierarquizar os seus valores e reconhecer aquilo que lhe é central para a vida e aquilo que deve ser evitado. Mas as relações sociais não são tão simples assim, reduzidas à condição de escolher entre pessoas, pois a mesma pessoa congrega contradições em si mesma e apresenta atitudes e posições diversas e por vezes opostas: podemos admirar alguém em algumas situações e desprezar em outras.

Posso admirar o piloto de aviação por sua técnica, destreza, conhecimento das leis da física e quanto à sua dedicação em realizar a sua profissão com maestria, mas não posso generalizar essa admiração para todos os campos de ação dessa pessoa. A mesma contradição pode ocorrer com o músico, com o cantor, com o padre, o pastor, o psicólogo, o pedreiro e com todos as outras profissões, pois as pessoas existem no mundo complexo e diversificado. Elas se fazem em múltiplos campos de atividade. É importante compreender o sentido geral das suas decisões e ações no mundo para podermos discernir sobre sua posição, ou seja, a qual comunidade de valores se implicam em dado momento da vida e da história. Trata-se de avaliar para que e para quem essa pessoa disponibiliza a sua personalidade na realização da vida social e coletiva.

A tarefa é desafiadora, pois a mesma pessoa de maestria em um campo de atividade pode não ser “alfabetizada” em outros. Alguém que gosto e admiro pode não ter qualquer domínio no campo da história e da política e, em virtude desse desconhecimento, ser manipulada por interesses políticos que nem sempre se apresentam imediatamente. Portanto, a identificação com essa pessoa admirada não poderia ser acompanhada de irracionalidade e cegueira, a ponto de nos omitir na crítica em relação as suas posições.

Aceito as dificuldades de entender nossa realidade social em sua complexidade, visto que necessitamos de instrumentos culturais para desvendá-la. Nem sempre temos tempo para tal tarefa analítica, visto que nosso trabalho, nossa forma de ganhar a vida não permitem que possamos participar de modo mais consistente da vida política. A dificuldade não ocorre por falta de capacidade e sim por meio de um sistema que limita a democracia e produz a necessidade do político profissional.

Por outro lado, convivemos com um chamado para participar e exprimir nossa revolta contra um mundo em que não merecemos viver. No cotidiano de nossos cálculos econômicos, sentimos desconforto com os preços do mercado, da conta de luz, do gás, do combustível, no custo de não termos tempo para viver com quem amamos, de não proporcionar uma vida razoável para os filhos. Sentimos uma espécie de dor pelo que não podemos conquistar, pelas injustiças, pela insegurança, pela esperteza desonesta de alguns.

A situação de desconforto pessoal e de necessidade de mudança nos colocam na condição em que nos comportamos como “radares”, querendo nos identificar com algo ou alguém que nos guie e oriente para a realização de uma vida melhor. Ficamos tateando as pessoas em quem podemos confiar nas condições de “guerra” de todos contra todos que caracteriza as relações sociais concorrenciais. Primeiro desejamos um salvador que nos liberte dessas mazelas da vida cotidiana e realize o que não temos tempo e condições de fazer, visto que nossa compreensão sobre os problemas do mundo ainda é difusa. Necessitamos de alguém para valorizar positivamente sem restrições. Do mesmo modo, como não sabemos ao certo qual a origem dos nossos males, nosso “radar” demanda algo ou alguém que possa ser condenado pela existência dos problemas. Buscamos avidamente uma representação do mal para canalizarmos nosso descontentamento. Necessitamos de algo ou alguém para odiar [e algo ou alguém para amar, como complemento necessário do objeto odiado].

Desse modo, a tarefa de compreender a realidade em sua complexidade fica reduzida a uma receita simples, construída pela dicotomia quase infantil de luta do mal contra o bem. Com o tempero do ódio, os adultos passam a funcionar pela fórmula bélica de identificação daqueles que são meus para se colocarem em oposição àqueles que são contra os meus. Esse modo empobrecido de se vincular com o mundo, que simplifica ao extremo a relação da pessoa com a realidade, passa a constituir psicologicamente uma espécie de salvo conduto para a violência.

Eis o funcionamento: no interior do meu grupo, me comporto a partir das relações humanas e até expresso sentimentos. Para aquele que avalio como sendo contra os meus oriento meu ódio numa espécie de vale tudo bárbaro. Para aqueles que são identificados como vilões não se aplicam as regras da civilidade. Justifica-se qualquer tipo de violência extrema, visto que o programa político que está subentendido nesse funcionamento psíquico é o de extirpar os outros, os que não são os meus.  A família, as leis, a dignidade e a defesa da vida pouco importam: os fins justificam os meios. As relações sociais ficam cindidas nessa receita simples: para os meus, a civilização, as benesses da sociedade e a humanidade; para os que entendo contra os meus, as maçãs podres, a demonização.

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Desaparecido o problema humano da universalidade e do bem público, evapora o projeto de integrar a totalidade dos seres humanos aos avanços culturais e econômicos. Os problemas reais de nossa sociedade e o desconforto pessoal vão sendo manipulados pelas fake news na construção desse mecanismo psíquico em cada um de nós e, em especial, nos mais fragilizados pela vida. As mentiras se fundamentam na insatisfação com os rumos da sociedade e na angustia pessoal, pois estamos carentes de conforto e segurança. Esse funcionamento binário edita uma “guerra” cotidiana entre os meus e os que são contra os meus, manipulando um grupo de seguidores para o fanatismo da credulidade e para a naturalização da violência extrema. O sofrimento desse grupo de pessoas vem sendo abastecido por conteúdos sedutores que comunicam mentiras e argumentos falsos. Manipulam sentimentos e idolatram a irracionalidade.

O mecanismo não é novo, pois visa deslocar nossa revolta dos verdadeiros problemas sociais, criando obstáculos para a compreensão das contradições fundamentais da nossa sociedade. Trata-se de sistematicamente individualizar os problemas sociais e encaminhar o debate político para o tema da personalidade das lideranças. Os problemas relacionados ao futuro do trabalho e dos trabalhadores, da manutenção e aprofundamento dos privilégios do grande capital, a violência sistemática contra opositores, a pobreza e destruição que esse modo de produção gera são sistematicamente omitidos. Assim, o futuro de um país é debatido irracionalmente a partir da identificação com o suposto salvador da pátria e manejado pelo ódio contra o bode expiatório da vez.

Ora, a atividade política necessita análise, estudo, reflexão, avaliação e atitudes articuladas à construção de um projeto de sociedade. Não podemos pensar o futuro sem compreender como que a nossa formação social se organiza estruturalmente em particularidades distintas e opostas. A maioria das pessoas, para viver, necessita vender a única coisa que possui, que é a energia para trabalhar. E esse conjunto de pessoas trabalhadoras tem interesses de se identificar com as causas dos trabalhadores. Por outro lado, existem outros grupos cuja orientação central é acumulo de dinheiro, vivem para valorizar ainda mais o que já possuem muito, atuando politicamente para manter seus privilégios.

A análise política, mesmo que passe pelo que as pessoas representam, é mais do que debater personalidades e etiquetas. Ela diz respeito à compreensão sobre qual parte da sociedade é beneficiada pelas medidas governamentais. Isso mesmo, a sociedade possui partes cujos interesses são opostos e temos que compreender que esse antagonismo existe mesmo quando não o mencionamos. Enfim, podemos nos perguntar como orientar nosso posicionamento político em uma realidade tão complexa e múltipla? Em quem acreditar e quais caminhos tomar? Constatamos inicialmente que não existe uma receita pronta que prescinda do trabalho de avaliação crítica, leitura criteriosa e reconhecimento da classe social beneficiária das políticas implementadas. Isso mesmo, existem classes antagônicas na nossa formação social e a classe que representa o capital não pode atender aos interesses do conjunto da sociedade.

Mesmo assim, apresento uma outra receita para nos ajudar nessa compreensão. Ela é simples e vital para as pessoas. Ela pode ajudar a orientar nossa avaliação sobre o que vem sendo feito em nosso país. Trata-se de avaliar o mundo e nossos posicionamentos a partir do princípio da defesa da vida.

A defesa da vida e do conhecimento como meio de libertação social pode orientar nossa compreensão de mundo e da política: quem atua na radicalização da violência e do armamento civil não pode defender a vida; quem atua contra as regras de fiscalização ambiental e se omite na fiscalização das queimadas na floresta não defende a vida; quem defende a redução do direito à aposentadoria e o limita não defende a vida; quem sistematicamente atuou contra o desenvolvimento da vacina em plena pandemia, dificultou a sua aprovação e retardou o seu uso, não pode defender a vida; quem propagandeou a utilização de medicamentos comprovadamente sem eficácia contra o Covid 19 não defendeu a vida; quem defendeu a estratégia de contaminação em massa da população para o retorno imediato à denominada normalidade de exploração do trabalho não praticou a defesa da vida, muito pelo contrário; quem organizou um movimento antidemocrático, procurando acabar com o sistema jurídico, com o objetivo de centralizar poderes ditatorialmente e manter privilégios, não defendeu a vida; quem atua organicamente pelos privilégios da minoria não pode defender a vida; quem não valoriza a vida dos trabalhadores não valoriza a vida; quem contribui para a destruição do SUS não valoriza a vida; quem se compromete com a aniquilação do conhecimento não valoriza a vida.

Quem apenas reconheceu uma pessoa na lista anterior ficou na superfície do problema. Quem aprontou tudo isso não foi uma personalidade desviada, mas sim uma classe social que se beneficiou com as medidas e continua a tirar vantagens com esse programa de governo. O ataque contra a vida não é apenas a ação de uma pessoa asquerosa. A violência praticada contra a sociedade e contra a natureza é de uma classe social que defende seus interesses particulares para garantir privilégios e acumular valor. E, para isso, faz uso de pessoas que não têm nenhum compromisso com a vida e com a civilidade.